A Pós-Verdade e a necessidade de uma Reforma

Alex Uemura
8 min readOct 31, 2020
Photo by Egor Myznik on Unsplash

Vivemos em um mundo atual de “pós-verdades”. Este termo, foi considerado a “palavra do ano” pelo dicionário de Oxford em 2016.

“Em seu verbete, o dicionário Oxford (MIDGLEY, 2016) descreve Pós-Verdade como um adjetivo relacionado a circunstâncias em que os fatos influenciam menos a opinião pública do que apelos à emoção ou às crenças pessoais” (Silvânia Siebert e Israel Vieira Pereira).

A relativização de absolutos, a pluralidade de verdades, a falta de humildade e quebrantamento estão hoje invadindo as igrejas.

Na prática, as pessoas acreditam no que querem acreditar, no que estão predispostas a crer e não no fato em si. E tal postura de pensamento influencia muito no cenário religioso e na prática de fé, como cristãos que somos.

Como escreveu Alister McGrath:

O evangelho não se resume a ideias, tem a ver com Deus agindo e continuando sua ação na história”.

E por isso, se faz imprescindível a reflexão sobre as bases de nossa fé e sobre as raízes de nosso pensamento cristão.

No dia 31 de outubro de 2020, datou-se a celebração e 503 anos da Reforma Protestante.

Dia 31 de outubro é considerado o “Dia da Reforma Protestante”, pois foi neste dia, no ano de 1517 que o monge agostiniano Martinho Lutero pregou suas 95 teses nas portas da igreja de Wittenberg, na Alemanha, protestando contra a prática de indulgências e contra o afastamento da Igreja das verdades bíblicas.

“Há vários lemas que os reformados gostam de usar para identificar e resumir as marcas da Reforma: Sola Scriptura, Sola Fides, Solus Christus, Sola Gratia, Soli Deo Gloria e o moto Ecclesia Reformata et Semper Reformanda Est. [frase] de autoria do reformado holandês Gisbertus Voetius (1589–1676), à época do Sínodo de Dort (1618–1619)”. (Augustus Nicodemus Lopes)

Em português: “Igreja Reformada deve sempre ser reformada!” (isto, pois a forma no latim “reformanda” é um particípio futuro passivo, portanto, voz passiva, não ativa).

Isso não significa que a Igreja deve sempre mudar, ou estar em constante mudança de seus valores, mas deve sempre retornar aos seus princípios, em contrapartida com a prática contemporânea. Ou seja, a igreja viva está sempre em reforma, sempre retornando aos valores originais das Escrituras, e este conceito é a base da Reforma!

Os princípios das Escrituras jamais mudarão, mas as gerações e a cultura estão em constante mudança. Assim sendo, não é a Igreja quem reforma a si mesma, mas o Espírito Santo quem conduz a Igreja a ser reformada pelo retorno aos princípios imutáveis da Palavra!

Nas palavras de Malcolm Watts:

Uma verdadeira igreja reformada, consoante à Palavra de Deus, é a habitação de Deus, que mantém e declara a verdade que aprouve a Ele revelar”.

Mas quais verdades precisamos reafirmar hoje, num mundo de “pós-verdades”? Quais são as bases sólidas as quais devemos nos firmar diante da pluralidade de opiniões e de crenças? Vejamos uma reafirmação de algumas destas verdades imutáveis:

1) REAFIRMAÇÃO DA GRAÇA EM QUEBRANTAMENTO (Sola Gratia)

Photo by Greg Weaver on Unsplash

Expandindo o conceito de “Sola Gratia” (ou “Somente a Graça”):

Os reformadores sustentavam que o pecador é salvo pela graça de Deus, o seu favor imerecido, somente. Essa doutrina significa que nada que o pecador fizer pode trazer-lhe o mérito para obter a graça de Deus, e que o pecador não coopera com Deus, a fim de merecer a sua salvação” (Guy Prentiss).

Entretanto, o não-merecimento da salvação não significa falta de uma mudança de vida. Pelo contrário, a graça opera arrependimento, que se faz evidente em mudanças práticas.

Martinho Lutero, afirmou em suas 1ª, 3ª e 4ª teses pregadas na porta da igreja de Winttenberg:

1ª Tese: Dizendo nosso Senhor e Mestre Jesus Cristo: Arrependei-vos…, certamente quer que toda a vida dos seus crentes na terra seja contínuo arrependimento…

3ª Tese: Todavia não quer que apenas se entenda o arrependimento interno; o arrependimento interno nem mesmo é arrependimento quando não produz toda sorte de modificações da carne.

4º Tese: Assim sendo, o arrependimento e o pesar, isto é, a verdadeira penitência, perdura enquanto o homem se desagradar de si mesmo, a saber, até a entrada desta para a vida eterna.

Em meio às ênfases do clero e do Papa a favor das indulgências e dos esforços próprios para obtenção de perdão e entrada no Céu, Martinho Lutero enfatiza a loucura da salvação a partir da cruz de Cristo, em que ocorre um paradoxo onde tudo o que se faz por justiça própria é ineficaz diante da justiça de Deus.

Romanos 1.17:

Porque no evangelho é revelada a justiça de Deus, uma justiça que do princípio ao fim é pela fé, como está escrito: ‘O justo viverá pela fé’”.

Escreve Mark Shaw acerca do pensamento de Lutero:

A cruz é, portanto, um paradoxo: Deus rejeita os orgulhosos, mas dá graça aos humildes; ele rejeita os belos heróis e derrama seu amor justificador sobre os feios e fracassados… Os cristãos são justificados diante de Deus, portanto, apenas quando abrem mão da sua própria justiça.”

A verdade bíblica é que a conversão começa com o reconhecimento dos próprios pecados e com a consciência da necessidade de arrependimento, mas esta consciência e prática de arrependimento aumentam e se aprofundam na medida em que a pessoa progride espiritualmente.

Com o passar dos anos, o cristão vê mais de Deus e mais de si mesmo, resultando em maior e mais profundo sentimento de quebrantamento […] Não somente isto, como também ocorre grande intercâmbio em que o crente aprende a depender cada vez menos de seu próprio desempenho e cada vez mais da obra perfeita de Cristo. Assim, sua alegria aumenta.” (Paul Washer).

O verdadeiro cristianismo se manifesta quando existe grande aceitação da graça de Deus em reconhecimento de nossa situação pecaminosa em verdadeiro quebrantamento ao invés de grande ênfase no moralismo espiritual. Quanto maior é o quebrantamento e reconhecimento da Graça de Deus, maior é o avivamento da Igreja.

Acredito que em nossos tempos atuais, isso se traduz como “ortodoxia humilde”: O cristão não tem o conhecimento de toda a verdade, mas está convicto de que Cristo é o Caminho, a Verdade e a Vida. Não detemos todo o conhecimento de Cristo (ou da vida em geral), mas estamos convictos de que Cristo é a Verdade, a Vida e o Caminho.

Infelizmente, muitos cristãos de teologia ortodoxa são péssimos na conjugação com sua aplicação correta. A ortopraxia (a prática correta) deve estar alinhada com a ortodoxia.

“As pessoas não são persuadidas, são atraídas. Precisamos ser capazes de comunicar muito mais pelo que somos do que pelo que dizemos” (Marion Jacobsen).

Às vezes, queremos tanto nos afastar de quem pratica o liberalismo, que deixamos de acertar. O medo de errar pode nos impedir de acertar. Em outras palavras:

NÃO PODEMOS PERMITIR QUE NOSSA LUTA CONTRA O QUE É ERRADO NOS TORNE INSENSÍVEIS E RUDES COM O PERDIDO E NECESSITADO.

A compreensão profunda da graça gera um sincero quebrantamento de corações, onde a Igreja se torna ambiente de cura para pecadores, não de moralismo exacerbado nem de antinomismo. Como escreve Brennam Manning:

A igreja institucional tornou-se alguém que inflige feridas nos que curam, em vez de ser alguém que cura os feridos”.

2) REAFIRMAÇÃO DA CRUZ DE CRISTO (SOMENTE CRISTO)

Outra verdade imutável que nos é necessário reafirmar sempre, sobretudo em nossos dias é: Solus Christus!

“A centralidade de Cristo é o fundamento da fé protestante. Martinho Lutero disse que Jesus Cristo é o ‘centro e a circunferência da Bíblia’ — isso significa que quem ele é e o que ele fez em sua morte e ressurreição são o conteúdo fundamental da Escritura” (Joel Beeke).

Em detrimento do consumismo cristão pós-moderno de nossos dias, onde a palavra do Evangelho se tornou mais uma perspectiva psicológica atual de autoajuda ou de atuação de cunho social, a grande necessidade atual é da pregação da Cruz de Cristo.

Em sua época, Lutero abordava a “teologia da cruz” como um caminho bíblico para a Igreja desorientada pelos abusos. Sua base para tal era o texto de 1 Coríntios 1.23–24:

“23 nós, porém, pregamos a Cristo crucificado, o qual, de fato, é escândalo para os judeus e loucura para os gentios 24 mas para os que foram chamados, tanto judeus como gregos, Cristo é o poder de Deus e a sabedoria de Deus”.

Pregar a cruz não significa necessariamente pregar sermões evangelísticos, mas sim abordar a perspectiva da cruz em tudo o que pregamos e fazemos. Como escreve o capelão da Universidade Duke, William Willimon, isso se torna relevante, pois estamos em meio a uma época de cristãos consumidores. Os consumidores desejam mais o entretenimento nos cultos do que a iluminação pela Palavra.

Consumidores não apenas querem “bênçãos” financeiras para si, mas também se focam mais na satisfação de seus anseios pessoais do que no cumprimento da missão de Cristo. A igreja lhes serve para que seus gostos e anseios sejam satisfeitos, sejam eles quais forem.

As pessoas hoje dizem: “Não gostei do culto hoje…”, como se o culto fosse algo para satisfazer as vontades delas. A perspectiva da cruz é compreendermos que não nos reunimos para assistir um espetáculo, ou um show, mas para adorar, glorificar a Deus, cultuar a Deus.

Quando levantarmos a cruz a cada semana como o único caminho para a salvação e única maneira de ver, transformamos nosso público em uma igreja e os consumistas em comprometidos” (Mark Shaw).

É a grande transformação de um grupo de pessoas que servem a si mesmas como num clube social para uma agência cumpridora da missão do Reino, focada na mensagem da Cruz.

Num mundo de “pós-verdades”, as pessoas não querem aprender, ouvir opiniões, ler ou compreender os fatos, apenas estão predispostas a ouvirem e compartilharem aquilo que desejam acreditar, não a verdade em si.

Como membro de uma Igreja de origem pós-reformada, creio em uma convicção doutrinária de vertente ortodoxa. Entretanto, o fato de se ter um documento balizador, não é garantia de que este documento será seguido. Ainda assim, muito pior é não ter um documento (ou negar as confissões ortodoxas), pois assim, não há como retornar a uma verdade.

A igreja viva está sempre em reforma, sempre retornando aos valores originais das Escrituras, e este conceito é a base da Reforma!

Como afirma Mark Shaw:

A revolução teológica de Lutero algumas vezes se resume pela frase ‘justificação pela fé’. Mas nem sempre valoriza-se o fato que a percepção da cruz de Lutero vai muito além de seu poder para salvar, pois inclui o seu poder para nos ajudar a ver”.

Assim, a verdadeira reforma ocorre quando enxergamos as reais necessidades de mudança pelas perspectivas bíblicas e confrontamos corajosamente qualquer tipo de manutenção do erro.

O grande clamor da Reforma, levantado por Martinho Lutero há 503 anos, perdura hoje, em meio às necessidades de uma “auto-reforma” em cada um de nós.

Soli deo glória,

Alex Uemura
instagram.com/@lexmura

--

--

Alex Uemura

Discípulo de Cristo, Missiólogo, Pastor. Escrevo sobre princípios atemporais aplicáveis à realidade de nossos dias.